sábado, 16 de agosto de 2008

Notas em guardanapos

1987

Uma noite em um quarto de hotel em São Paulo, sem papel para fazer algumas anotações, usei um guardanapo para registrar, desenhar algumas ideias que me vieram assim ....sabe quando a brisa da madrugada sopra coisas estranhas durante o sono? eu nunca andei sem os meus cadernos de desenho e aí eu fui pega desprevenida. Mas o guardanapo serviu para registrar formas que depois viriam a fazer parte de uma série de desenhos e pinturas.


Estudo a partir do desenho do guardanapo


Pinturas Vinil sobre papelão sola e lona


Aquarelas



Acrílica sobre lona






Alguns preceitos para usar um caderno de viagem

José Neves. Portugal

Eleger os cadernos e os instrumentos de desenho com o acerto do operário
que escolhe as suas ferramentas.
Desenhar sempre por necessidade, vício ou prazer, nunca por obrigação.
A obrigação pode cegar.
Desenhar as coisas como se de as salvar se tratasse.
Observar como quem recorda e representar como quem inventa,
para que o desenho consagre o estranho como reconhecível e
nos devolva o familiar como surpresa.
Reagir às coisas desenhando, para nos construirmos.
Observar pacientemente para que o que registamos possa surgir mais tarde
sob formas imponderáveis.

Os cadernos de viagem são a bagagem que arrumamos hoje para vir desarrumar o futuro.


terça-feira, 1 de julho de 2008

Fly

2002

Em 2001-2002, o imaginário de alguns painéis rupestres de Horseshoe Canyon, encantou-nos com suas figuras estáticas, verticalizadas, flutuando num espaço ilusório. Nenhuma cena de caça, nenhum movimento, são como fantasmas. São figuras quase espiritualizadas.
A série de pinturas "Fly" surge desse contato e de uma pesquisa no Mestrado, na disciplina Semiótica da Cultura quando usamos um desenho de Arlindo Daibert-MG, para estabelecer uma relação com os "carrot men"- homens cenouras, como são chamados os personagens representados nessas paredes.


Canyonlands National Park's
Horseshoe Canyon


Detalhe do painel


Desenho: espelhos temporais
Texto extraído de parte da monografia apresentada à disciplina Semiótica da Cultura . 2001

Trata-se de um painel denominado Barrier Canyon Style, localizado em Canyonlands National Park em Utah, na América do Norte e cujos desenhos pertencem a um período que vai aproximadamente de 1900 AC a 10 DC. Nos exemplos vistos, a mão primitiva modela corpos em uma cenografia quase imaterial, num movimento ritmado pelas figuras, inseridas no cenário-superfície da pedra. São desenhos primitivos da América do Norte, percursos feitos por mãos rudimentares e que nos fazem ver imagens de uma coletividade e determinam um período da história dos povos norte americanos. Na primeira visão que tivemos desse painel, sentimo-nos atraídos e intrigados com a atitude desses corpos que se repetem ao longo da parede de pedra.
O termo "Barrier Style "foi cunhado por Polly Shaafsma na sua publicação "The Rock Art of Utah" em 1971, baseando-se a definição do estilo em observação de 18 sítios separados, sendo este o mais notável e cuja localização fica ao longo do córrego Barrier em Horseshoe Canyon.

Estes desenhos de Barrier Canyon se diferem de outras manifestações gráficas pré-históricas, onde comumente vêm-se cenas de caça e lutas, mostrando-nos um cenário composto por seres que figurativizam em sua postura, um sentido espiritualizado, uma espécie de estado meditativo.

Estabelecer um paralelo entre os traços culturais dessa linguagem de desenhos primitivos e obras modernas e/oucontemporâneas, era o objetivo da pesquisa em Semiótica da Cultura e então selecionamos um detalhe do painel de Barrier Canyon que encontra grande similaridade na estrutura de uma obra de Arlindo Daibert, artista plástico mineiro, datada de 1986. O tratamento dado ao desenho de Arlindo também evoca um certo impulso "primitivo" nos traços, nas incisões que faz tanto nas figuras como no fundo, uma linha construída pelo atrito de gestos impulsivos e contínuos, e que caracteriza um fazer próprio do Desenho.


Daibert. Mista. 180 x 160cm (e detalhe do painel )
A série "Fly"
algumas pinturas da série, em acrílica sobre linho





quarta-feira, 18 de junho de 2008

Desenhos * Croquis * Rabiscos

Materiais
Se se pretende tornar a intenção de expressão tangível, é essencial ter um entendimento e sensibilidade para com os materiais, suas potencialidades e suas limitações.


Flexibilidade
Isto se refere à capacidade para adaptar todas as habilidades e conhecimentos a qualquer problema ou julgamento artísticos, novo ou diferente com que se deparar. Um artista flexível será capaz de trabalhar livre, grande, pequeno, por partes, do geral, rápido, devagar, cuidadosamente; ele será capaz de construir visando destruir ou destruir objetivando construir.



Fruto seco. Aquarela
Depoimento:
Geórgia Kyriakakis


Desenho como matriz


“Iniciei meus estudos em arte por meio do desenho, mais especificamente com grafite sobre papel. Logo compreendi que em meu desenho não cabia o arrependimento; não havia conserto nem esconderijo para um gesto duvidoso. Tudo nele, mesmo a linha mais leve ou a marca mais tênue, era como uma profunda incisão irreversível. Para realizá-lo, era sempre necessária uma certa dose de coragem e determinação.”

“A primeira lição que o desenho me ensinou foi a necessidade de uma atitude contundente perante o fazer – saber correr os riscos que cada trabalho apresenta. Quando hoje opero a partir dos limites entre o equilíbrio e a instabilidade – quando tenciono o limite de permanência e fragilidade das coisas –, é como se estivesse constantemente transportando para o mundo físico e concreto o perigo que um gesto gráfico carrega e a precisão que ele requer.”
Disegno, Desenho, Desígnio, 2007. ED. SENAC. p.161


Alguns desenhos realizados em visitas ao Parque da Pedra da Cebola e à Ilha do Frade. Vitória ES


Parque Pedra da Cebola , Ilha do Frade e Praia do canto








Jogos Rúnicos

Pinturas
Acrílica sobre tela

Na série "Jogos rúnicos" o uso de glifos do alfabeto das runas foi a chegada de um caminho percorrido desde 1990 quando alguns sinais gráficos surgiram na construção de alguns projetos.


Runas de barro feitas por mim

Realizamos então alguns estudos sobre sinais, símbolos e arquétipos da história do homem e, obrigatoriamente, passeamos pela origem da escrita dos povos primitivos. Esse caminho nos conduziu ao estudo do alfabeto rúnico, no qual nos deparamos com muitos daqueles sinais gráficos surgidos aleatoriamente em muitos desenhos.

O surgimento das runas na história abrange períodos que vão desde a Pré-História a 500 aC , reaparecendo na Idade Média. Cada glifo rúnico é uma letra e também uma palavra; estão associadas à energia dos planetas e se constituem num oráculo. A linguagem das runas fala dos nossos medos e motivações, são símbolos sagrados aos quais se atribuem poderes mágicos e cuja origem está nos símbolos de culto pré-histórico.

Na série de pinturas "Jogos rúnicos", conhecendo então o significado de cada sinal/glifo, trabalhamos ludicamente organizando um espaço onde a grafia e as cores claras constituíssem um sentido de multidimensionalidade, e no qual formas meio difusas flutuam.









Objetos pintados com talismãs rúnicos

Scalata

"Eu, que contemplo o azul do céu, não sou diante dele um sujeito acósmico, não o possuo em pensamento, não desdobro diante dele uma idéia de azul que me daria seu segredo, abandono-me a ele, enveredo-me nesse mistério, ele " se pensa em mim", sou o próprio céu que se reúne, recolhe-se e põe-se a existir para si, minha consciência é obstruída por esse azul ilimitado. "

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. 1999. Martins Fontes. p.289


Série Scalata
2004
pinturas . acrílica sobre linho


...azuis




À primeira vista, são manchas que se movem, nuvens azuis e ocres. Por baixo delas, o azul compacto é produto de camadas que se adensam fazendo o etéreo parecer sólido. Na verdade, as manchas são milhares de fibras de uma tecitura muito fina. Parte dela configura planos frontais que se organizam de modo vagamente geométrico e se sucedem em profundidade. A outra parte parece nuvem a soltar-se da primeira para diluir seus contornos e apagar as diferenças.
Tudo parte de um fundo escuro que tende a engolir a luz. Por isso as cores são turvas. No entanto, a luz se impõe pela reiteração e pela saturação. É a compactação das finas camadas de cor e, ao mesmo tempo, a sua dissolução em névoa que faz surgir, junto ao fundo escuro com o qual se mantém em constante tensão, o espaço visível destas pinturas. É do todo indiferenciado da escuridão que emerge a individuação dos planos que se sobrepõem.
São portanto dois mundos que se encontram: por baixo, a escuridão absorvente mas também fundadora; por cima, a luz turva a dar conformidade a um espaço sempre em reconfiguração. Ambos se precisam e se tensionam. Atravessando um e outro, emergindo entre véus, torres e anjos, casas e escadas aguardam reinterpretação. Mais tangíveis na forma, desafiam nosso poder de compreensão e necessidade permanente de dar sentido ao informe.

Lincoln G. Dias
Professor do Centro de Artes da UFES
Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP


vermelhos, laranjas...




outros

Presente de Aniversário

Situado mais além de um ponto morto, começa o primeiro ato de movimento."
Paul Klee



Série Presente de aniversário
2006
Mista sobre MDF: pintura, monotipia, desenho, colagem e outras intervenções.









Um brinquedo guardado há mais de 50 anos – uma boneca feita de massa, é o objeto referencial desses desenhos/pinturas. Na sua temporalidade, o desmembramento, a corrosão, as alterações na superfície do corpo, o desgaste da roupa que vestia, as tentativas de conter a esfacelação de partes do tronco se misturaram a questões que versam sobre o corpo mesmo, sobre esse tempo, a memória e sentimentos de fatos vividos.

Desse universo pessoal foram extraídos outros elementos os quais se conjugam com as figuras de corpos transfigurados, acéfalos, que são os da boneca, compondo assim essa visualidade. Fotos antigas, desenhos de anotações, cartas, escritos, objetos de coleção, e outras lembranças guardadas, são aqui resignificados por meio da representação, ora explicita, ora velada nas colagens ou sob camadas de tinta branca.
É um dizer desdizendo?


...um gesto de prazer, pois é isso que o desenho sempre nos proporcionou, porém, nesse ato estão contidos, além de um dizer amoroso, um redobrar coextensivo à cura da alma, interiorização libertária e declaração de resistência.